Uma selva na sala

Caladium

Quando a mamã chegou de Moçambique encheu a sala de estar com vasos de filodendro, caladium, erva-da-fortuna e tronco do Brasil. Colocou os vasos de filodendro na última prateleira da estante de pau-rosa que veio desmontada no caixote de retornados. Foi das poucas peças que couberam no elevador e não tiveram de ser carregadas pelas escadas estreitas e escuras, ganhando mossas enquanto subiam e suávamos.
O filodendro alastrou pelas paredes da sala. A mamã encaminhava as hastes pelo percurso das quatro paredes, passando-as cuidadosamente por cima da porta, segurando-as com ajuda de pequenos pregos. Tinha muito orgulho na proliferação de metros de haste de filodendro que se produziam a partir a partir de pés nascidos em pequenos vasos pousados na estante, exigindo frequente e abundante rega, sendo esta difícil sem encharcar a prateleira ou o chão, o que me irritava. Trazer selva para dentro de casa exigia um estúpido trabalho.
Num dos cantos da sala, sobre uma mesa de pau-preto com tampo de vidro, ergueu um altar de enormes caladiuns de diversas cores e matizes; brancos, só brancos, vermelhos com branco, vermelhos com rosa, só vermelhos ou só rosa matizado. Os caladiuns eram a beleza natural completa. 
Havia troncos do Brasil sobre a mesa de centro e no chão, e vasos de erva-da-fortuna pela casa toda, porque davam sorte. A mamã trouxe as plantas de Moçambique, disfarçadas na bagagem. Raízes, bolbos ou estaca. Não se podia entrar com elas na fronteira, mas cá chegaram. As raízes vinham embrulhadas em algodão molhado embrulhado em pano, depois em plástico e dentro de sacos bem atados. Foram experiências de transplante e proliferação vegetal bem conseguidas.
A mamã tinha sorte com as plantas como com tudo o que lhe nascesse das mãos. Menos comigo. A mamã tinha o dom de Deus, o da reprodução e manutenção. A mamã era sagrada e sacralizava. Nenhuma planta lhe morria. Tinha tanta sorte com as decorativas como com as da agricultura. Tudo crescia viçoso e saboroso. Não apreciava, contudo, o trabalho da terra, que considerava uma escravidão, embora lhe conhecesse todos os segredos e manhas. Sempre que me ouvia sonhar com um metro quadrado de chão para plantar a minha horta e ter os meus animais, dissuadia-me. “Tira essas ideias da cabeça, menina. Isso dá muito trabalho, menina. Nem penses nisso, menina.” Contemplava-a sem palavras, sorrindo, desacreditando, observando-a sem perceber como é que uma mulher que toda a vida tinha feito crescer da terra a luxúria vegetal, ajoelhada sobre os seus grãos, a evitava tanto.
A minha mãe nunca viveu no mato. Nunca fomos propriamente para a selva. A Lourenço Marques branca era ordenada e limpa, tropical, é certo, mas domesticada. Os vasos de filodendro, ao princípio, não me pareceram mal, mas quando a sala se transformou numa floresta cerrada de hastes alastrando por todas as paredes, senti-me em expedição pelos trópicos húmidos, ao ar livre, onde não há casa, portanto sem refúgio nem esconderijo. Odiava os filodendros que forravam as paredes, estação após estação, com folhas viçosas, perfeitas, quase de plástico, a que ela dava brilho, mescladas de branco e amarelado entre tons de verde. O excesso vegetal tornava a casa desconfortável. Sentia que na minha sala moravam as criaturas que protegem os jardins, com os seus brilhos fátuos, o que encerrava uma dimensão contra natura, porque morávamos num quinto andar do Feijó, perto do centro-Sul. Da janela das traseiras  avistavam-se uns prédios inacabados, de construção clandestina suspensa, onde habitavam famílias negras com inúmeras crianças cujos pais trabalhavam na construção civil e as mães em limpezas ou cozinhas de bar e restaurante, fazendo puxadas clandestinas do poste de eletricidade para conseguirem ter luz nos altos prédios vadios e acartando baldes e jerricans de água pelas escadas acima, que enchiam na rua, fornecendo-se numa casa próxima. Do lado da frente existia um enorme terreno baldio onde as crianças do bairro brincavam e mexiam nos pipis umas dos outras pela primeira vez. À beira da estrada, numa barraca de ciganos, a paz doméstica exigia que o cigano espancasse a cigana, que gritava ao longo do dia, enquanto lhe atirava com pedaços da barra de sabão azul e branco com que lhe lavava a roupa. Os filhos berravam todos ao mesmo tempo. O cigano zurrava. Os ciganos eram o espetáculo da janela da frente. Pretos atrás, ciganos à frente. Estava-se muito bem. Para lá do baldio, que se estendia até ao Centro Sul, via-se o Cristo-Rei de costa para nós, é certo, mas Cristo é sempre lindo, mesmo de costas, e todo o casario branco de Almada, elevando-se, uma grande vista.
Eu estava nos vintes, fascinada com as leituras da geração do Orpheu,  Rimbaud, Duras, o que apanhasse de bom, e a selva da sala transcendia a minha escassa tolerância estética. Considerava a mamã uma pessoa de mau gosto, antiquada e assaloiada. Tinha vergonha do tropicalismo e desdenhava a casa, destilando a minha raiva em sugestões desagradáveis sobre o seu aspeto, com secura e amargueza. Não se podia negar que tinha nascido em Moçambique, que estava cheia desse ar, mas tirando o Arcanjo, que viera de Benguela e com quem tivera algumas discussões sobre a beleza e valor das duas ex-colónias, todos os meus amigos eram portugueses, e não se falava de África, que tinha ficado para trás. Odiava os meus pais acabados de chegar de Moçambique. Odiava-os de morte. Desejava que morressem num acidente automóvel com o Renault 9 cor de café com leite, a caminho de qualquer localidade onde fossem visitar os outros retornados com os quais auguravam o pior dos futuros para a África negra. Parecia-me tudo gente congelada no tempo e na ideologia, incapaz de se adaptar, esquecer, permanecer e avançar. Não via futuro para mim. Ser órfã tardia constituía a única salvação ao meu alcance. Se os meus pais desaparecessem, o meu caminho ficaria livre, como já estava mais ou menos, desde que tinha chegado de Moçambique. Livre para ler, para beber e chegar tarde, para o sexo com quem me apetecesse, e como apetecia, embora as condições físicas se apresentassem desfavoráveis. O meu corpo não se conformava. Os pneus na cintura, a barriga saliente, as mamas grandes e suspensas não se adequavam ao padrão, mas havia outros trunfos que me iam permitindo furar; uma cara bonita, com lindos olhos amarelos, lábios pulposos, atrevimento e palavra forte. E escrevia bem. Escrever bem era uma fonte de admiradores.
As minhas palavras duras, o meu desdém e repúdio da casa levaram a que a mamã fosse lentamente retirando as plantas da sala, até que um dia cheguei do emprego e as cortara todas, abdicando do seu grande orgulho decorativo. Odiava a minha mãe. A minha mãe odiava-me, contudo queria que a casa fosse minha, que a casa me agradasse, que eu estivesse na casa. Aprovei, arrogantemente. Respondi-lhe que já o devia ter feito há mais tempo. Não agradeci, sempre me julguei dona e senhora, sempre considerei que o mundo tinha de me prestar a devida vassalagem. 

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